terça-feira, 24 de maio de 2011

Eu sei, mas não devia - Marina Colassanti


Eu sei que a gente se acostuma.

Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento

de fundos e a não ter outra vista que não

seja as janelas ao redor.

E porque não tem vista,

logo se acostuma a não olhar para fora.

E porque não olha para fora logo se acostuma

a não abrir de todo as cortinas.

E porque não abre as cortinas logo

se acostuma a acender mais cedo a luz.

E a medida que se acostuma, esquece o sol,

esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã

sobressaltado porque está na hora.

A tomar café correndo porque está atrasado.

A ler jornal no ônibus porque não pode

perder o tempo da viagem.

A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.

A sair do trabalho porque já é noite.

A cochilar no ônibus porque está cansado.

A deitar cedo e dormir pesado

sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal

e a ler sobre a guerra.

E aceitando a guerra, aceita seus mortos

e que haja número para os mortos.

E aceitando os números aceita não

acreditar nas negociações de paz.

E não aceitando as negociações de paz,

aceita ler todo dia da guerra,

dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar

o dia inteiro e ouvir no telefone:

hoje não posso ir.

A sorrir para as pessoas sem

receber um sorriso de volta.

A ser ignorado quando

precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar

por tudo o que deseja e o de que necessita.

A lutar para ganhar o dinheiro

com que pagar.

E a ganhar menos do que precisa.

E a fazer fila para pagar.

E a pagar mais do que as coisas valem.

E a saber que cada vez pagará mais.

E a procurar mais trabalho,

para ganhar mais dinheiro,

para ter com que pagar

nas filas que se cobra.

A gente se acostuma a andar

na rua e a ver cartazes.

A abrir as revistas e a ver anúncios.

A ligar a televisão e a ver comerciais.

A ir ao cinema e engolir publicidade.

A ser instigado, conduzido, desnorteado,

lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição.

Às salas fechadas de ar condicionado

e cheiro de cigarro.

À luz artificial de ligeiro tremor.

Ao choque que os olhos levam na luz natural.

Às bactérias da água potável.

À contaminação da água do mar.

À lenta morte dos rios.

Se acostuma a não ouvir passarinho,

a não ter galo de madrugada,

a temer a hidrofobia dos cães,

a não colher fruta no pé,

a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas

demais para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber,

vai se afastando uma dor aqui,

um ressentimento ali, uma revolta acolá.

Se o cinema está cheio a gente senta

na primeira fila e torce um pouco o pescoço.

Se a praia está contaminada a gente

só molha os pés e sua no resto do corpo.

Se o trabalho está duro, a gente

se consola pensando no fim de semana.

E se no fim de semana não há muito

o que fazer a gente vai dormir cedo

e ainda fica satisfeito porque

tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não

se ralar na aspereza,

para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas,

sangramentos, para esquivar-se

da faca e da baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida

que aos poucos se gasta e, que gasta,

de tanto acostumar, se perde de si mesma.

- Marina Colassanti (SP)

sexta-feira, 20 de maio de 2011

É tudo culpa do frio...


Esse céu nublado,

Esse dia branco

O frio que invade a casa

E nos toca a pele sem pedir licença

Me sinto violentada,

Por lembranças que me invadem

Por lagrimas que não consigo controlar

Nós dois tomando sorvete,

Aquele filme com pipoca debaixo do edredom

Uma garrafa de vinho,

Uma dança,

Um abraço,

Uma vida...

Todas as músicas que não param de tocar

E intensifica todos os sentimentos

E essa vista da janela...

E o ar que eu respiro!

Não posso nem falar das fotografias...

Nem no telefone que não toca

Ou mesmo que toque não faz diferença

Porque não é você.

De repente, vejo que os anos se passaram

Não sei mais quem é esse “você”

Não sei mais diferenciar o que foi do que é

Não sei direito quem sou

Não quero ser só saudade

Não quero ser uma feriada aberta

Nem uma dor que não passa

Não quero ser o que sobrou depois que você se foi

Não quero ser!

Fecho as portas, janelas, e cortinas,

O dia não é mais branco, ele é negro...

Os cobertores me protegem do ar frio

E o álcool apaga os pensamentos

Aos poucos as lembranças se vão

E vem o sono que cura tudo

Tudo fica nos sonhos

E acordo mais uma vez, eu de novo,

Atrasada como sempre!